No dia 24 de Setembro de 2008, foram retomadas as Tertúlias, desta vez a convidada foi a Historiadora, Dra Maria Máxima Vaz, a qual nos trouxe, como tema, a alimentação e hábitos na Idade Média, por serem os que mais diferem dos nossos dias.
A Palestrante começou por nos informar que as refeições eram duas:
- Jantar pelos 10/11 horas;
- Ceia à noite.
"Admite-se que poderia haver uma refeição ligeira pela manhã, mas não se encontraram ainda referências. As fontes que temos são as indicações em relatos ou pragmáticas daquilo que se come ou deve comer e apenas a estas duas refeições: jantar e ceia. O Rei tomava as refeições em privado, na sua câmara. Todos os alimentos do Rei eram provados perante o mordomo, na cozinha. Este funcionário régio não podia perder os alimentos de vista até chegarem à mesa do rei e, na sua presença, o próprio mordomo provava a comida. Uma tábua rectangular, “o talhador”, tinha a função que hoje têm os pratos e era individual, assim como a faca. Já havia colher, mas o garfo era desconhecido.
Outra peça individual era a “napeira”, que me parece ser a antepassada dos guardanapos, mas de maior dimensão, a qual estava presa à toalha junto de cada comensal, para limpar as mãos. A faca não podia limpar-se à napeira, mas a uma fatia de pão. O mordomo servia o rei, colocando a comida no talhador. A refeição começava com fruta e vinho. O assado era o prato principal. Era de carnes tenras. Mas havia muitas outras formas de preparar a carne sem ser o assado. Predominavam o carneiro, as carnes de animais de montaria, com predominância do javali e também as aves de caça.Com o assado vinham os molhos. O molho verde era uma constante. O sabor mais apreciado era o agridoce. Fazia-se largo uso das ervas aromáticas. As especiarias já se usavam mas eram muito caras e só iam à mesa do rei ou dos nobres. O mesmo acontecia com o açúcar. Nos registos de compras de produtos alimentares, aparecem números referentes a arrobas de açúcar para a casa real mas não eram para confeccionar sobremesas. Os frutos, frescos ou secos é que se comiam em quantidade. Usavam gorduras animais: manteiga e toucinho. O azeite também era usado mas sobretudo nos pratos de peixe, tais como o salmão, lampreia, pescada, esturjão, solha e trutas. Comiam-se muitos legumes cozidos, colocados numa vasilha comum e tirados à mão para cima do talhador, procedendo de igual forma com as carnes e com os peixes. Compreende-se que era necessário ir lavando as mãos, pelo que os servidores vinham com um “gomil cheio de água e uma bacia”, junto dos comensais, que, depois de lavadas, limpavam as mãos à sua “napeira”. Havia várias qualidades de sopas, (caldos) mas não havia sobremesas doces na Idade Média. Talvez o uso do açúcar em muitos cozinhados, explique a não existência de sobremesas doces.
Em abono do que afirmo, vou transcrever uma das muitas receitas em que o açúcar está presente:
“Tomareis uma galinha e assá-la-eis e depois de bem assada cortá-la-eis em pedaços; e então tomareis ovos, gemas e claras, tudo muito bem batido. E um pedaço desta galinha de cada vez, muito bem envolto nestes ovos. Tereis uma sertã com manteiga ao fogo e frigi-la-eis nesta manteiga toda; e tomareis fatias de pão e far-lhe-eis outro tanto embrulhadas nos ovos e fritas. E tereis açúcar claro e passareis a galinha e as sopas por ele e poreis tudo numa vasilha com as sopas por baixo e canela pisada e açúcar por cima.”
Nesta receita o açúcar é só colocado no fim, mas há muitas receitas em que se coloca o açúcar com os outros temperos. Aqui deixo um exemplo:
“Tomarão a carne do carneiro ou do porco fresco e picá-la-ão e lavá-la-ão e deitam-na em uma panela e não há-de ter osso nenhum e deitar-lhe-ão uma pouca de água e deitar-lhe-ão no cozimento um pedaço de açúcar e um pedaço de manteiga e a água seja pouca. Depois de cozida deitar-lhe-ão um pequeno cravo e depois tirá-la-ão deste caldo tendo acolá uma dúzia de ovos com claras e gemas batidas, doces, e então tomareis esses ovos e tereis acolá uma sertã com uma pouca de manteiga sobre o borralho e depois da manteiga quente deitareis metade daqueles ovos e então por-lhe-eis a carne; depois em cima daquela ainda mal frita até vos parecer, virai-la e meteis a rapadoira para fazer buracos para irem os ovos que ainda não usastes e agora lhe deitais, tendo cuidado que nunca se pegue à sertã. Colocam-se depois sobre fatias passadas por açúcar e deita-se-lhe por cima canela e açúcar branco. Borrifam-se com água de flor.” Esta maneira de dizer pode parecer-nos estranha. Mesmo assim eu fiz uma adaptação para ser entendida, embora não alterando o sentido e procurando manter o mais possível a antiga forma. Com vista a tornar o tema mais real, foram lidas, à maneira que se escrevia na época, duas receitas, as quais passamos a descrever:
Receita de coelho em tigela (*)
Depois do coelho cozido com adubo e cheiros e toucinho fá-lo-ão em pedaços e o toucinho em talhadas e po-lo-ão em uma tigela de fogo nova. Então entre uma talhada e outra de coelho porão uma de toucinho e depois que for todo assim posto nesta tigela e o adubo deste coelho há-de ser cravo e açafrão, e o cravo seja mais que o açafrão e depois dele posto na tigela chegar-lhe-ão os cheiros por cima assim como para salada, salsa e coentro e hortelã e cebola. Então deitar-lhe-ão o caldo em que o coelho foi cozido por cima e po-lo-ão em umas brasas a cozer. E então quando ferver tomarão meia dúzia de ovos e batidos, clara e gema deitar-lhos por cima. Então tomareis um bacio de arame, emborcá-lo-eis em cima, com umas poucas de brasas no cu do bacio para que fiquem corados.
Receita da tigelada de perdiz (*)
Tomarão a perdiz e cozê-la-ão com uma posta de toucinho em talhadas e temperada com seus cheiros e sal e não há-de levar vinagre e depois dela cozida, cortá-la-ão como quando vai à mesa e terão acolá uma dúzia dovos batidos e tomarão um pão duro em fatias muito delgadas e tomarão um arrátel daçúcar e os ovos hão-de ser batidos com açúcar. O açúcar irá ao lume e as fatias para serem bem feitas hão-de ferver um pouco. Então tirar o tacho fora do fogo para baixar a fervura e torná-lo a pôr sobre o fogo e neste ponto deste açúcar há-de ir uma pouca dágua de flor e não hão-de fazer senão tirar e pôr no fogo. E depois de feitas que tiverem o ponto muito alto tirá-las e po-las num prato e a perdiz que está nos ovos doces. Hão-de tomar uma tigela de real nova e pôr tudo lá dentro juntando-lhe as fatias e o açúcar em ponto.
A nossa Convidada disse-nos para não se estranhar a forma como se diziam as coisas nem algumas palavras, que não era falta de educação. Era assim que se falava e muito pior, estas receitas (*) estão no livro de cozinha de uma princesa e foram recolhidas pela Dra Maria Máxima Vaz.
Em relação à Confraria que representa, a Dra. Irene Gonçalves informou-nos que a referida instituição foi fundada em 2004, junto à freguesia de São Brás, na Amadora. A referida Confraria tem uma cozinha de degustação e é uma das Confrarias mais activas do país. Quanto ao traje da Confraria, a Dra. Irene Gonçalves falou de pormenores como o chapéu igual ao do Fernando pessoa, como símbolo da ligação da gastronomia à literatura.
Para o final desta Tertúlia estava reservada uma surpresa. Um bolo com a figura de D. Dinis, confeccionado, a pedido da Organização, no Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar da Pontinha, e alguns licores produzidos e ofertados pela Escola Agrícola da Paiã.
A Palestrante começou por nos informar que as refeições eram duas:
- Jantar pelos 10/11 horas;
- Ceia à noite.
"Admite-se que poderia haver uma refeição ligeira pela manhã, mas não se encontraram ainda referências. As fontes que temos são as indicações em relatos ou pragmáticas daquilo que se come ou deve comer e apenas a estas duas refeições: jantar e ceia. O Rei tomava as refeições em privado, na sua câmara. Todos os alimentos do Rei eram provados perante o mordomo, na cozinha. Este funcionário régio não podia perder os alimentos de vista até chegarem à mesa do rei e, na sua presença, o próprio mordomo provava a comida. Uma tábua rectangular, “o talhador”, tinha a função que hoje têm os pratos e era individual, assim como a faca. Já havia colher, mas o garfo era desconhecido.
Outra peça individual era a “napeira”, que me parece ser a antepassada dos guardanapos, mas de maior dimensão, a qual estava presa à toalha junto de cada comensal, para limpar as mãos. A faca não podia limpar-se à napeira, mas a uma fatia de pão. O mordomo servia o rei, colocando a comida no talhador. A refeição começava com fruta e vinho. O assado era o prato principal. Era de carnes tenras. Mas havia muitas outras formas de preparar a carne sem ser o assado. Predominavam o carneiro, as carnes de animais de montaria, com predominância do javali e também as aves de caça.Com o assado vinham os molhos. O molho verde era uma constante. O sabor mais apreciado era o agridoce. Fazia-se largo uso das ervas aromáticas. As especiarias já se usavam mas eram muito caras e só iam à mesa do rei ou dos nobres. O mesmo acontecia com o açúcar. Nos registos de compras de produtos alimentares, aparecem números referentes a arrobas de açúcar para a casa real mas não eram para confeccionar sobremesas. Os frutos, frescos ou secos é que se comiam em quantidade. Usavam gorduras animais: manteiga e toucinho. O azeite também era usado mas sobretudo nos pratos de peixe, tais como o salmão, lampreia, pescada, esturjão, solha e trutas. Comiam-se muitos legumes cozidos, colocados numa vasilha comum e tirados à mão para cima do talhador, procedendo de igual forma com as carnes e com os peixes. Compreende-se que era necessário ir lavando as mãos, pelo que os servidores vinham com um “gomil cheio de água e uma bacia”, junto dos comensais, que, depois de lavadas, limpavam as mãos à sua “napeira”. Havia várias qualidades de sopas, (caldos) mas não havia sobremesas doces na Idade Média. Talvez o uso do açúcar em muitos cozinhados, explique a não existência de sobremesas doces.
Em abono do que afirmo, vou transcrever uma das muitas receitas em que o açúcar está presente:
“Tomareis uma galinha e assá-la-eis e depois de bem assada cortá-la-eis em pedaços; e então tomareis ovos, gemas e claras, tudo muito bem batido. E um pedaço desta galinha de cada vez, muito bem envolto nestes ovos. Tereis uma sertã com manteiga ao fogo e frigi-la-eis nesta manteiga toda; e tomareis fatias de pão e far-lhe-eis outro tanto embrulhadas nos ovos e fritas. E tereis açúcar claro e passareis a galinha e as sopas por ele e poreis tudo numa vasilha com as sopas por baixo e canela pisada e açúcar por cima.”
Nesta receita o açúcar é só colocado no fim, mas há muitas receitas em que se coloca o açúcar com os outros temperos. Aqui deixo um exemplo:
“Tomarão a carne do carneiro ou do porco fresco e picá-la-ão e lavá-la-ão e deitam-na em uma panela e não há-de ter osso nenhum e deitar-lhe-ão uma pouca de água e deitar-lhe-ão no cozimento um pedaço de açúcar e um pedaço de manteiga e a água seja pouca. Depois de cozida deitar-lhe-ão um pequeno cravo e depois tirá-la-ão deste caldo tendo acolá uma dúzia de ovos com claras e gemas batidas, doces, e então tomareis esses ovos e tereis acolá uma sertã com uma pouca de manteiga sobre o borralho e depois da manteiga quente deitareis metade daqueles ovos e então por-lhe-eis a carne; depois em cima daquela ainda mal frita até vos parecer, virai-la e meteis a rapadoira para fazer buracos para irem os ovos que ainda não usastes e agora lhe deitais, tendo cuidado que nunca se pegue à sertã. Colocam-se depois sobre fatias passadas por açúcar e deita-se-lhe por cima canela e açúcar branco. Borrifam-se com água de flor.” Esta maneira de dizer pode parecer-nos estranha. Mesmo assim eu fiz uma adaptação para ser entendida, embora não alterando o sentido e procurando manter o mais possível a antiga forma. Com vista a tornar o tema mais real, foram lidas, à maneira que se escrevia na época, duas receitas, as quais passamos a descrever:
Receita de coelho em tigela (*)
Depois do coelho cozido com adubo e cheiros e toucinho fá-lo-ão em pedaços e o toucinho em talhadas e po-lo-ão em uma tigela de fogo nova. Então entre uma talhada e outra de coelho porão uma de toucinho e depois que for todo assim posto nesta tigela e o adubo deste coelho há-de ser cravo e açafrão, e o cravo seja mais que o açafrão e depois dele posto na tigela chegar-lhe-ão os cheiros por cima assim como para salada, salsa e coentro e hortelã e cebola. Então deitar-lhe-ão o caldo em que o coelho foi cozido por cima e po-lo-ão em umas brasas a cozer. E então quando ferver tomarão meia dúzia de ovos e batidos, clara e gema deitar-lhos por cima. Então tomareis um bacio de arame, emborcá-lo-eis em cima, com umas poucas de brasas no cu do bacio para que fiquem corados.
Receita da tigelada de perdiz (*)
Tomarão a perdiz e cozê-la-ão com uma posta de toucinho em talhadas e temperada com seus cheiros e sal e não há-de levar vinagre e depois dela cozida, cortá-la-ão como quando vai à mesa e terão acolá uma dúzia dovos batidos e tomarão um pão duro em fatias muito delgadas e tomarão um arrátel daçúcar e os ovos hão-de ser batidos com açúcar. O açúcar irá ao lume e as fatias para serem bem feitas hão-de ferver um pouco. Então tirar o tacho fora do fogo para baixar a fervura e torná-lo a pôr sobre o fogo e neste ponto deste açúcar há-de ir uma pouca dágua de flor e não hão-de fazer senão tirar e pôr no fogo. E depois de feitas que tiverem o ponto muito alto tirá-las e po-las num prato e a perdiz que está nos ovos doces. Hão-de tomar uma tigela de real nova e pôr tudo lá dentro juntando-lhe as fatias e o açúcar em ponto.
A nossa Convidada disse-nos para não se estranhar a forma como se diziam as coisas nem algumas palavras, que não era falta de educação. Era assim que se falava e muito pior, estas receitas (*) estão no livro de cozinha de uma princesa e foram recolhidas pela Dra Maria Máxima Vaz.
Para este evento a Organização convidou, também, a Dra Irene Gonçalves, a qual para além de Presidentes da Confraria Gastronómica da Amadora, é também, formadora e chefe de cozinha.
Em relação à Confraria que representa, a Dra. Irene Gonçalves informou-nos que a referida instituição foi fundada em 2004, junto à freguesia de São Brás, na Amadora. A referida Confraria tem uma cozinha de degustação e é uma das Confrarias mais activas do país. Quanto ao traje da Confraria, a Dra. Irene Gonçalves falou de pormenores como o chapéu igual ao do Fernando pessoa, como símbolo da ligação da gastronomia à literatura.
Para o final desta Tertúlia estava reservada uma surpresa. Um bolo com a figura de D. Dinis, confeccionado, a pedido da Organização, no Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar da Pontinha, e alguns licores produzidos e ofertados pela Escola Agrícola da Paiã.
No sorteio, habitual, foram oferecidos livros relacionados com o tema da Tertúlia, compotas e uma miniatura de uma panela de três pés, símbolo da Confraria Gastronómica da Amadora.
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